O Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e a Fundação Gaudium Magnum – Maria e João Cortez de Lobão (FGM) exibem partir de 21 de abril, e até 3 de julho de 2022 uma nova obra no âmbito do projeto museográfico conjunto “O Belo, a Sedução e a Partilha”.
A nova obra, que pertence à Coleção Gaudium Magnum, é um óleo sobre tela de Giovanni Baglione (Roma, 1566-1643) e que tem como título São João Baptista no Deserto (194 × 151 cm), uma obra assinada e datada de 1610. Tal como ocorreu com as anteriores peças o novo quadro estará em exibição na ala de pintores estrangeiros, num espaço dedicado ao programa, situado na Sala 49 do Museu.
A obra São João Baptista no Deserto de Giovanni Baglione segue-se a dois outros quadros da Fundação Gaudium Magnum: Mulher numa despensa, uma obra feita em parceria entre Giacomo Legi e Antiveduto Gramatica e o Martírio de São João Damasceno de Luigi Miradori, peça que é agora substituída.
São João Baptista no Deserto de Giovanni Baglione: esta grande tela de São João Baptista, representado jovem, assinada por Giovanni Baglione e datada de 1610, relaciona-se muito provavelmente com uma encomenda do cardeal Alessandro Damasceni Pereti di Montalto (15711623) que, em 3 de agosto desse ano, pagou a Baglione 100 scudi por uma pintura do mesmo tema. Sobrinho do Papa Sisto V, foi feito cardeal em 1585, apenas com 14 anos, tornou-se secretário da Cúria, mecenas de Bernini, de Carlo Maderno, amante de música e grande colecionador.
A encomenda mostra como Baglione era um dos pintores romanos com maior aceitação entre os cardeais e as principais famílias dos grandes colecionadores de arte da cúria papal, mesmo depois do episódio que o opôs judicialmente a Caravaggio e a outros pintores do seu entorno e que fez com que o nome de Baglione aparecesse frequentemente depreciado numa vasta bibliografia caravagesca.
Em 1603, Baglione acusou Caravaggio e alguns dos pintores mais próximos do grande mestre barroco de serem os autores de dois poemas jocosos contra si que circulavam anonimamente em Roma, hoje conhecidos por terem ficado anexos ao processo forense.
Apesar de alguns dos visados, como Orazio Gentileschi, reconhecerem a valia artística de Baglione, Caravaggio proferiu no processo uma frase rude e direta dizendo que não conhecia nenhum artista «que pensasse que Baglione fosse um bom pintor».
A afirmação teve mais consequências na historiografia contemporânea, depois da forte valorização de Caravaggio na segunda metade do século XX, do que na fama do pintor no seu tempo e, se teve alguma influência artística, foi a interrupção do breve período em que Baglione se deixara seduzir pelo forte claro-escuro de Caravaggio que tinha marcado sobretudo as suas duas versões do «Amor Sacro e Profano» (hoje uma em Roma, no Palazzo Barberini e outra na Gemäldegalerie de Berlim), pintadas em 1602. Estas pinturas, fortemente caravagescas, entendidas como resposta ao célebre Amor vincit omnia de Caravaggio, foram provavelmente a causa direta dos poemas ofensivos contra Baglione.
De facto, ao longo da sua carreira, Giovanni Baglione absorveu e cruzou influências muito diversas. Nascido em Roma, em 1566, após uma aprendizagem curta com Francesco Morelli, trabalhou nas obras do Vaticano, na Scala Santa, na Biblioteca e no Palazzo Lateranense, incorporando influências de
Veronese e de pintores tardo maneiristas como Frederico Zuccari e o Cavalier d’ Arpino. Uma doença levou-o a viajar para Nápoles, na década final do século, onde trabalhou na Cartuxa de San Martino, com Giuseppe Cesare. Foi quando retornou a Roma, no final do século, e nos anos seguintes, que se manifestou na sua obra a mais sensível influência de Caravaggio, interrompida após o conflito de 1603. Baglione iniciou então uma obra eclética, a que não é estranho o seu interesse crítico sobre as obras dos seus pares, que terá uma consequência na obra literária que produzirá no fim da sua vida: Le nove chiese di Roma, editada em 1639 por Andre Fei, e Le Vite de’pittori scultori et architetti dal pontificato di Gregorio XIII de 1572 in fino a’ tempi di Papa Urbano Otavo nel 1642, publicada no ano anterior à sua morte (1643), uma série de biografias de artistas romanos ou ativos em Roma que se apresentava como uma continuação das célebres Vitae de Giorgio Vasari.
Este interesse pelas obras dos outros artistas, bem como um estudo continuado dos modelos escultóricos, marcaram profundamente a obra de Baglione, numa versatilidade que lhe foi reconhecida por alguns escritores contemporâneos, como Karel van Mander. Também Giulio Mancini (1559-1630), escritor, protonotário apostólico e grande colecionador, descrevia Baglione, nas suas Considerazioni sulla pittura, escritas entre 1617 e 1621, como um dos artistas que trabalhavam «com um estilo individual» sem seguir «os passos de ninguém», classificando-o como «homem de grande civilidade, sempre honrado e de grande estima». Giovanni Baglione teve, efetivamente, uma carreira repleta de reconhecimento. Foi príncipe da Academia de São Lucas e recebeu do papa Paolo V a Ordem portuguesa de Cavaleiro de Cristo, com cujas insígnias sempre se representou.
Obra em Exposição: Giovanni Baglione (Roma, 1566-1643), São João Baptista no Deserto c. 1610 | Óleo sobre tela, 194 × 151 cm | Fundação Gaudium Magnum – Coleção Maria e João Cortez de Lobão | ©Jorge Simão
A pintura da coleção Gaudium Magnum representando São João Baptista é a mais monumental das obras em que tratou este tema, preferindo sempre representar o Santo na sua juventude. Uma bela tela, datada de 1600 (vendida na Christie’s de Nova Iorque em 19 de abril de 2007) mostra São João quase criança mas já vestido com os adereços de profeta no deserto. Também se conhecem vários estudos gráficos do mesmo tema, um deles, do Allentown Art Museum (inv. A 15942), provavelmente preparatório para a pintura que agora se mostra.
A figura de São João mostra uma forte conceção escultórica da forma, de contorno definido por um desenho forte e preciso e um delicado tratamento da luz sobre a figura, colocada sobre o fundo escuro do rochedo, deixando o lado direito do quadro aberto para uma paisagem baixa, suavemente modelada, e para um céu nebuloso cujo colorido denuncia a influência da pintura bolonhesa. O resultado é de uma forte monumentalidade e de um impressivo impacto no espetador.
Curiosamente, pelos mesmos anos de 1610, um dos seus opositores no processo de 1603, Orazio Gentileschi, pintava o seu David Olhando a Cabeça de Golias, hoje na Galeria Spada de Roma, com uma muito semelhante relação entre o fundo de paisagem e a figura principal, mostrando como os pintores romanos no início de Seiscentos estavam atentos às obras dos seus pares, num jogo de rivalidades, mas também de mútuas influências.