Estou escandalizada.
Tenho nojo.
Sinto-me profundamente incomodada com o desfile macabro de sofrimento transformado em conteúdo: as palavras “sofro” e “fui vítima” tornaram-se rótulos usados à pressa para angariar likes e empatia instantânea. É como se a dor fosse uma peça de teatro cujo guião autoriza todas as pessoas a assistir, a comentar e a virar a página sem perguntar como fica quem ficou com as mãos e o corpo marcados.
Vêem-se entrevistas retalhadas, os excertos tristes selecionados com frieza, a parte que dói transformada num espetáculo. Por trás dessa curadoria há uma mensagem silenciosa e tóxica:
“Se até as figuras públicas passaram por isto e continuam, então não há mal nenhum.”
Aceita-se. Normaliza-se. Aprende-se a viver com isso.
Não!
Não é aceitável normalizar o que é inaceitável.
Não é aceitável transformar uma realidade traumática num espetáculo onde se batem palmas ao sofrimento.
Grito porque me revolta que a exposição contínua do abuso sirva, muitas vezes, para anestesiar. A repetição cria um hábito de indiferença. A vítima deixa de ser pessoa; passa a ser símbolo. E o símbolo habitua. Habitua tanto que se começa a pensar que a solução é suportar.
Quem já teve o corpo violado, mesmo quando diz que “sobrevivemos”, sabe que a sobrevivência não é uma medalha: é uma cicatriz que ninguém devia promover como normalidade.
Falo com a voz ferida de quem carrega memórias que não queria ter. Ainda hoje essa sombra insiste em tocar-me quando vejo a banalização do assunto nas timelines.
A banalização é uma traição: olha para nós e diz “já viste? até eles falam sobre isto e seguem em frente”.
A mensagem torna-se venenosa: sofrer é aceitável, calar é escolha, morrer pode parecer a única saída.
Não é.
Sei-o porque, várias vezes, pensei em acabar com tudo. Parei porque, em silêncio, vi amigos suicidarem-se, um atrás do outro.
Hoje tenho uma certeza trágica: quando o sofrimento é apresentado como inevitável, a desesperança cresce. E então o suicídio ganha contornos de solução: se tudo é normal, se a dor não tem remédio, morrer parece uma saída.
Este texto é um apelo, não só de raiva, mas de urgência moral. Não podemos assistir, partilhar e aplaudir a repetição do sofrimento humano como se fosse entretenimento. Temos de parar de alimentar o mórbido, de reduzir histórias a fragmentos virais.
Precisamos abrir espaços reais de acolhimento, não palcos de autopromoção.
Se estás a ler este texto e sentes no estômago o mesmo nojo, a mesma revolta, age. Pergunta a quem sofre se quer realmente partilhar; procura ajuda profissional; denuncia a instrumentalização do trauma.
Escrevi “Eva entrega a Costela a Adão” para mostrar a dor que silenciamos e as consequências de quando silenciamos essa dor. Vou apresentar o meu segundo livro de uma trilogia “O amor que procuras está dentro de ti” e fundei a Associação Amar Eva.
Estou disposta a ouvir e a acompanhar. Mas o que, muitas vezes, ouço é: “Deixa lá, há quem sofra mais do que eu.”
Normalizar a dor mata e nós não podemos, nem devemos, ser cúmplices.
Fernanda Ferreira, Professora, Mãe, Fundadora da Associação Amar Eva
Autora do livro “Eva entrega a Costela a Adão” e “O Amor que procuras está dentro de ti”
Vice-presidente Operativa Regional da Europa, na Rede Global de Mentores
https://www.redeglobaldementores.org/
Contacto: amareva.associacao@gmail.com